segunda-feira, 12 de outubro de 2009

São Paulo e(´) Música – parte I


Adoniran Barbosa tragando a branquinha matinal.



Há algo na alma de cada cidade que dita o tom das músicas que a ela é dedicada. Pode ser um exagero lírico usar o termo alma, então troquemos por aura, ares, atmosfera. O fato é que ninguém canta São Paulo exaltando o espigão da Paulista, as árvores do Ibirapuera, a serra da Cantareira. As músicas que homenageiam são Paulo não passam pelo Parque da Independência, e visitam pouco as ruas de Higienópolis e Jardins. Pode parecer óbvio, mas não é.

Os baianos amam cantar Salvador e a Bahia. Cantam de suas terras, de seu mar, de suas ilhas, como se estivessem vendo um álbum de fotografias. Cantam a Ilha de Itaparica como se ela acabasse de ser descoberta por algum navegante, ou sob a ótica de um pescador que vai com sua jangada aportar em suas areias. A Baia de Todos os Santos é cantada e recantada. Hoje, passar uma tarde em Itapuã não é muito diferente de se passar uma tarde nas Astúrias do Guarujá. Mas quando se canta Itapuã, somos levados a ver imagens de uma praia paradisíaca, aonde é impossível não ser feliz.

Que não se confunda o que digo. Isso não passa nem perto de ser uma crítica. Apenas tento provar meu ponto de vista. Como exemplo, a música Beira Mar, de Gilberto Gil:



Somente mar ao redor 
Mas o mar não é todo mar
Mar que em todo mundo exista
O melhor, é o mar do mundo
De um certo ponto de vista
De onde só se avista o mar 
A ilha de Itaparica
   



Acho que junto à Bahia, apenas o Rio de Janeiro foi tão bem provido de poetas que se esmeraram em cantar suas maravilhas. A tríade Rio, Búzios e Angra dos Reis é recorrente. Para mim, Angra dos Reis, Paraty e Ilha Grande, são imbatíveis. Para os compositores cariocas, o tema preferido é a Cidade do Rio de Janeiro. Já comentei no post anterior: é difícil encontrar uma cidade mais provida de belezas naturais. A Bossa Nova, dando nova conotação à sofisticação do Jazz, misturando com samba e outros ritmos nacionais, foi o estilo mestre na exaltação das belezas cariocas. Vinícios e Tom, para mim, os dois maiores da Bossa, souberam como poucos expressar o Rio de Janeiro, e o sentimento de ser brasileiro. Explorando aquela melancolia típica do blues, ou do fado, os poetas da bossa nova cantaram a felicidade e tristeza, o amor e a saudade. Como pano de fundo, a Cidade Maravilhosa. Tom Jobin, no Samba do Avião diz:

 

Minha alma canta 
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar Praia sem fim
Rio, você foi feito pra mim
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
  


Outros compositores, de todo o Brasil, também cantaram o Rio. O samba, tradição dos morros e da malandragem carioca cantou as favelas, desmistificou a vida do trabalhador pobre assim como fez do malandro um personagem querido. Canta-se a alegria do morro, do carnaval, do povo carioca.Seria injusto se eu dissesse que estão maquiando a sua realidade. Não há mentira no que é dito. São pontos de vista, necessários para que possamos ser felizes, mesmo nas adversidades.

Mas eu simplesmente não posso ignorar que ao lado de Pães de Açúcar e Corcovados há uma infinidade de barracos aonde impera o tráfico de drogas e a miséria, além de outras mazelas sociais. Lagoa Rodrigo de Freitas, Aterro do Flamengo, não são lugares imaculados. A Pedra da Gávea não está lá sozinha no meio de uma inabitada Floresta da Tijuca. Não é tão inabitada assim. "Tá tudo dominado". Falo do Rio, mas Salvador não é diferente.
Não digo que eles ignoraram isso tudo. Mas se pensarmos nas letras, nos prós e contras, o saldo é altamente positivo.

 

Voltemos então a São Paulo, considerada a mais dura das cidades Brasileiras. Penso que o Paulistano é, por natureza, crítico. Não diria um pessimista, ou São Paulo não seria São Paulo. Talvez melancólico. Mas se eu me ater tão somente aos paulistanos aqui nascidos, estarei me esquecendo de grande quantidade de poetas e compositores que cantaram São Paulo. Imigrantes do Brasil e do mundo. Pouco exaltam do belo quando cantam São Paulo. Falam da dor, da dureza do cotidiano, da chuva.

Eu, como paulistano, vejo de dentro para fora. Mas sempre me imagino vendo pelos olhos de alguém que não conhece a cidade. Se meu primeiro contato com São Paulo fosse a música Sampa, e eu lesse:



Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas 


...tendo que escolher entre a avenida Paulista e Copacabana, não pensaria uma fração de segundos. Tom Zé, baiano apaixonado por São Paulo cantava em São São Paulo:


São, São Paulo meu amor
São, São Paulo quanta dor
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor


Esses dois exemplos não são muito animadores, mas é fácil entender. Afinal, ambos vêm da imagem criada pelos imigrantes que vieram para São Paulo atrás de um sonho de uma vida digna. O sonho não é de uma vida digna em São Paulo, e sim no retorno à sua terra. Gente veio para São Paulo imaginando ser uma fase passageira, em nome de um benefício maior, de frutos que seriam colhidos no futuro. Qual não seria a decepção dessas pessoas ao ver que o quadro pintado não revela a paisagem real? Milhões vieram e nunca mais voltaram para casa. É compreensível sua decepção. Ainda que os artistas em sua maioria estejam ou estiveram aqui por opção, cantam o que os olhos de tantos outros vêem.

A música dedicada à São Paulo é quase sempre coberta de esperanças e dor, alguma revolta, alguma indignação. Uma das bandas mais paulistanas, o Ira, cantava "Pobre São Paulo, pobre paulista". Sentimento parecido se encontra com frequência em Titãs, em Inocentes e outras. O rock paulista vale um post inteiro. Fica sempre marcada a crítica à sociedade, paulista assim como brasileira. Nem sempre a tônica é a revolta. Ultraje a Rigor, minha banda nacional preferida, transformou a revolta num crítica inteligente, com humor ácido e perspicaz. Em Vamos Virar Japonês:



Somos todos um bando de caipiras
Adorando o que vem do estrangeiro
Comparando também não me admira
Basta ver o produto brasileiro
Vamos progredir de vez
Vamos virar japonês!




Apesar da brincadeira infeliz de Vinícios, São Paulo não é o túmulo do samba*. Adoniram Barbosa, talvez o maior sambista paulista, cantava São Paulo com os trejeitos dos trabalhadores italianos. Em sua obra há sambas alegres, e outros nem tanto. No lugar da favela, o cortiço, a Saudosa Maloca:


Se o senhor não "tá" lembrado
Dá licença de "contá"
Que aqui onde agora está
Este edifício "arto"
Era uma casa "véia"
Um palacete assobradado
Foi aquí, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca
"Construímo" nossa maloca


Outro sambista paulistano, Paulo Vanzolini - recentemente homenageado com um documentário - fez um grande número de canções com São Paulo como pano de fundo. A música Ronda, numa votação recente foi considerada a música com a cara de São Paulo:
 


De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está

E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João
 
A música é linda, mas o final não é lá muito feliz! Enfim, pode-se ficar dias discorrendo sobre isso. Não é uma tese, não é um estudo. Nada do que eu disse são mais do que impressões e constatações. Sempre haverá quem não concorda, e exemplos que me contradizem. Tento aqui generalizar mesmo. Não é para ser bom ou ruim, melhor ou pior. É o que eu vejo, como paulistano. E você, como vê?














Perdizes, visto do viaduto da Av. Dr. Arnaldo sobre a Av. Sumaré

*Nelson Motta põe pingos nos is sobre essa frase em Noites Tropicais. Resumindo a partir de recordações não muito precisas, Vinícios assistia a uma apresentação em São Paulo e o público falava muito alto. Ele exclamou a frase indignado, e algum jornalista espertinho fez o desfavor de espalhar.

Um comentário:

  1. Hey!

    Curti seu blog e a maneira como analisa as coisas. Como um paulistano de nascença, mas paranaense de coração, digo que qdo estive aí, no ano passado, na primeira vez onde de fato eu caminhava pela cidade, tentando captar impressões, vi que São Paulo é a terra dos contrastes: o belo e o feio, o chique e o brega, o pobre e o rico, gente falando super alto e sons quase imperceptíveis, tudo junto, misturado, reunido, estranhamente convivendo bem. Eu me assustei, na verdade, mas foi um susto bom, pois a vontade de desvendar mais continua...

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